Pelo direito de ser um homem torto
Por mais que pareça estranho – e às vezes parece até pra mim –, eu
sempre defendi os desajustados. Quando via filmes ou desenhos, sempre
tive facilidade em olhar as coisas sob a perspectiva dos vilões das
histórias e me compadecia por eles. Por que será que o Esqueleto não
tinha o direito de morar no Castelo de Grayskull (mesmo que enjaulasse a
Feiticeira)? Qual problema haveria no Vingador manter os garotos na
terra perdida da Caverna do Dragão ou o Capitão Gancho fazer a desforra
com o Peter Pan?
O tempo passou e minha curiosidade infantil se transformou em
interesse profissional. Me formei psicólogo e sempre tive vontade de
trabalhar no sistema penitenciário. Tive experiências curtas, mas bem
produtivas, nessa área, ao mesmo tempo que me fixei em um consultório.
O fato assustador é que as características com as quais nos
espantamos nos bandidos mais famosos não estão muito distantes de nós.
Digo mais: estão em nossas próprias mãos. Foi a necessidade de entender
essa relação sombria que me levou a pesquisar a vida de grandes
criminosos históricos como Adolf Hitler, Charles Manson e o Maníaco do
Parque para escrever o livro “Por que fazemos o mal?“. Nada do que se observa na personalidade deles difere radicalmente de uma pessoa comum.
De alguma forma, qualquer um percebe, por intuição, esse tipo de
conexão obscura em si mesmo quando me pergunta ao final do relato de
primeira sessão: “sou normal, doutor?”
Sem admitir, sabemos que temos um monstro contido dentro de nós,
pronto para atacar, submeter ou subverter a ordem vigente, ainda que
seja para pisar na grama ou beliscar o irmão mais novo. No trânsito
metropolitano, nos revelamos verdadeiros sociopatas.
Na empresa, assediamos moralmente sob pretexto de gracinhas entre
colegas de trabalho. Esquecemos o troco, atrasamos nos compromissos,
falamos indevidamente com os amigos e submetemos nossas namoradas e esposas a situações humilhantes. O que há de generoso nisso tudo?
O álibi está pronto e sempre temos uma explicação brilhante na ponta
da língua. Eu, você e o Fernandinho Beira-Mar, todos somos santos.
O que seria normal, afinal? Essa é uma palavra estranha no meu
vocabulário, pois pode significar comum, saudável, razoável, digno,
moral ou dentro do esperado. Mas qual seria o orgão regulador que
carimba o atestado de sanidade ou normalidade para alguém?
As pessoas procuram um psicólogo como se ele fosse um auditor de suas
vidas, alguém pra responder a clássica pergunta “onde foi que eu
errei?”. Nesses casos, eu me recuso a dar um parecer, afinal, sou um defensor da vida torta – ou melhor, do direito existencial pela vida torta em cada pessoa.
Nada me surpreende e fascina tanto quanto uma vida dita degenerada,
fracassada ou cheia de hospício. Naquilo que as pessoas chamam de
desvirtuamento existe algo também de genuíno e honesto; às vezes mais do
que numa vida morna e regrada. Grandes caras que conheci são efeitos
colaterais ambulantes, pois são homens que andaram na contramão, mesmo
que involuntariamente, e descobriram beleza em lugares inóspitos e
totalmente áridos da existência humana.
Quando usamos métricas matemáticas no quesito humano, asfixiamos a
nossa natureza porque reivindicamos direitos morais que são
inalcançáveis. O erro me soa muito mais um ato comum que se tivesse o
resultado esperado seria chamado acerto, mas que, como foi um tiro
n’água, chamamos de erro após uma autópsia emocional tendenciosa. O amor
“fracassado” foi tão válido como aquele que “perdurou”.
Gostaria de compartilhar três casos em especial me marcaram no consultório pela linha totalmente fora da curva.
Pedófilo arrependido
Ele vinha de um processo de reinserção social após anos em regime
prisional. Havia molestado sua enteada dos 7 aos 16 anos. Depois de
sofrer as represálias conhecidas aos pedófilos na cadeia, aquele homem
era uma sombra distante do vigor que possuía na juventude. Em seu relato
ele dizia com a honestidade de um leão que segura o cervo entre os
dentes: “eu a amava, de um jeito estranho, mas eu a amava!”
As sequelas visíveis da menina (depressão e magreza anoréxica) não
eram um alerta para aquele homem que “amava” crianças com o coração de
um menino. Seu senso estético era pouco evoluído e, apesar de não haver
presença de algum retardo, ele guardava consigo a autoimagem de uma
criança de 7 anos. Para ele, até ser preso, não havia “pecado” em
“namorar” pela internet com uma menina de 8 anos.
Colecionador de sexo bizarro
Ele amava amarrilhos, algemas, punhos, chicotes e animais exóticos.
Todos na sua cama super king. Para as pessoas de hábitos sexuais
tradicionais (que se aventuram nos orifícios conhecidos) aquele homem
soaria bizarro. Mas era tão curioso ouvir o carinho que existia entre
ele e sua boneca inflável num ménage a trois com uma porquinha (literalmente) que vinha do interior de SP especialmente para o deleite daquele casal querido.
Se tirássemos as palavras “boneca inflável” e “porquinha” qualquer um
conseguiria ouvir um homem relatando seu amor por duas irmãs gêmeas que
o correspondiam em pé de igualdade. Excrementos eram usuais em suas
transas e, sem o menor pudor, dizia que ingeria fezes como quem comia um
brigadeiro de panela.
Assassino não-declarado
Aquele homem era considerado um perigoso “ex”-traficante. Foi para
terapia sob intimação da esposa para tratar de seu estranho hábito de
afastar quem ele pudesse do caminho dela. Nunca ficou claro o método que
aquele espanhol utilizava para afastar as pessoas do convívio de sua
amada. Mas ele era de uma fineza no trato de dar inveja. Cumprimentava a
todos com extrema gentileza e classe e nunca deixava alguém sem ajuda.
De sua boca homicida (nunca revelada) jamais se via uma deselegância ou
estupidez. Seu carisma podia convercer qualquer um a permanecer num papo
agradável por horas sem fim.
* * *
Com essas histórias, não estou querendo legitimar a prática de crimes,
muito menos incentivar ou fazer vista grossa com histórias de abuso.
Com consequências, claro, mas apenas retratar vidas possíveis, como a
sua e a minha.
Quando um caso de violência doméstica surge nos jornais, ouço a
opinião pública inflamada atrás do culpado, execrando cada atitude ao
mesmo tempo que cria um perfil psicológico monstruoso do criminoso.
A questão é que não gosto de seguir o caminho comum de julgar,
condenar, executar, empacotar a ideia num plástico bolha e mandar para
bem longe de mim como se eu fosse a emanação da pureza humana. Nossos
descaminhos também compõem aquilo que somos.
Existem qualidades impessoais por trás da fachada de perversidade que
não podemos negar que possuímos. A mesma inveja que nos consome está
presente na admiração irrestrita a um ídolo inspirador que tentamos
alcançar de alguma forma. O territorialismo do marido que sufoca a
mulher com ciúme também a protege de paqueradores inoportunos. A
intensidade das brigas desastrosas está presente nos arroubos
apaixonados do mesmo jovem casal de pombinhos. A esperteza disfarçada do
estelionatário é semelhante àquela que nos encanta em Morgan Freeman. A
presunção que angaria desafetos está embutida na autoconfiança que
fecha um negócio milionário.
Justificados ou não, os atos perversos estão intimamente ligados ao
bem e à paz que se almeja para um mundo melhor. De um jeito estranho,
toleramos a crueldade ao nosso redor como parte da nossa engrenagem
sócio-psico-biológica e que ainda alimenta a presença do que chamamos de
“mal” entre nós. Como num zoológico psicológico, olhamos o perigoso
animal que nos habita enjaulado do lado de fora, “seguro e distanciado”
da nossa percepção. É de Clarice Lispector o pensamento que “é preciso
acreditar no sangue como parte de nossa vida. A truculência. É amor
também.”
Isso tudo me levou a pensar que He-Man ao usar seu truque sujo (com a
espada mágica) de deixar de ser o fracote Adam contra o Esqueleto não o
torna muito diferente daquela malévola pilha de ossos falante. Assim
como você, eu e nossos inimigos prediletos.
Para concluir, provoco vocês com o psicanalista Anthony Storr quando
diz:
“O fato sombrio é que somos a espécie mais cruel e implacável que
jamais pisou sobre a Terra e que, embora possamos ficar horrorizados
quando lemos, no jornal ou nos livros, histórias sobre atrocidades
cometidas pelo homem contra o homem, sabemos, intimamente, que cada um
de nós abriga dentro de si os mesmos impulsos selvagens que levam ao
assassínio, à tortura e à guerra.”
por em www.papodehomem.com.br
0 comentários :
Postar um comentário